domingo, 5 de novembro de 2023

Publicação comemorativa dos 10 anos das Olímpiadas Nacionais da Filosofia




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ENSAIO FILOSÓFICO: ARTE OU NÃO ARTE?

 

ARTE OU NÃO ARTE?

Ano Letivo 2022-23

Professor Rui Brejo

Maria Francisca Salgueiro nº19 11ºH


INTRODUÇÃO 

O problema da definição de arte está no centro de um antigo debate, assim como muitas outras perguntas: “O que é a arte?”; “O que é que todas as obras ou ações às quais chamamos arte têm em comum?”; “O que é que distingue a arte daquilo que não é arte?”; “Será possível definir a arte?”; “Será importante definir a arte?”. Todas elas são coerentes e suscitam-nos alguma curiosidade. Será que podemos considerar o desenho de uma criança de cinco anos arte? Ou apenas as obras que estão nos museus?

Foquemo-nos na última pergunta daquelas que foram enumeradas: “Será importante definir a arte?”. Para responder à mesma, vejamos um excerto da notícia “Empregada de limpeza confunde arte com lixo” publicada no JN a 29 de outubro de 2015: “Uma empregada de limpeza confundiu, no sábado, uma instalação artística com lixo e limpou a sala onde a peça estava exposta. A obra de arte foi entretanto reposta e abriu ao público na terça-feira, no Museu de Arte Contemporânea de Bolzano, em Itália.”[1] Talvez se existisse algo que delimitasse a arte de forma concreta, este incidente não teria ocorrido. Mas será a arte tão objetiva ao ponto de poder ser delimitada? Será possível comparar a arte a algo tão rigorosamente científico? São estas as questões às quais pretendemos responder ao longo deste ensaio filosófico.

A TEORIA FORMAL DA ARTE 

Há milhares de anos que diversos filósofos procuram soluções para o problema da definição de arte. Para uns, aquilo que define arte são as propriedades intrínsecas de um objeto. Fazem parte das teorias essencialistas da arte. Para outros, aquilo que caracteriza uma obra de arte são propriedades extrínsecas ao objeto, fazendo parte das teorias não essencialistas.

No entanto, na minha perspetiva, existe uma que se destaca dentro das teorias essencialistas: a teoria da arte como forma.

A teoria formalista diz-nos que não importa a emoção que o artista quis revelar na obra, mas sim o sentimento que esta desperta no público. Qualquer obra que classificamos como arte tem o poder de despertar em nós, espetadores, uma emoção estética.

Surge assim uma nova questão: O que é a estética?

A estética, segundo a filosofia é uma sensação que remete para o belo, sublime e que nos permite distinguir a graciosidade e a beleza do desagradável e feio. Segundo Immanuel Kant[2], a capacidade de sentirmos uma emoção estética é a priori e universal. Todos nós, seres-humanos, temos a capacidade de sentir, experienciar e formular juízos de valor. Podemos experimentar a emoção estética enquanto criadores ou enquanto observadores.

 Então e para nós, seres humanos, o que é que é considerado “belo”?

A verdade é que, ao longo da história, o nosso conceito de beleza foi sofrendo alterações. No entanto, mesmo que os nossos gostos pessoais e contemporâneos mudem, há certas coisas que se mantêm atemporais. São essas características que já são de tal forma tão naturais para nós que nos podem ajudar a identificar o que é ou não belo.

A principal característica é a simetria. Desde os primórdios da humanidade que o nosso cérebro reconhecia simetria na natureza e era isso que nos ajudava a manter em segurança. Conchas, árvores, folhas, flores e até mesmo animais: por ser tão comum na fauna e flora, encontrámos na simetria uma espécie de abrigo. Era uma ajuda para os nossos ancestrais conseguirem avaliar os perigos e reagir mais rapidamente.

Esta característica servia também para analisar seres humanos. Não só para escolher o parceiro mais fértil e saudável, como para reconhecer inimigos. Existe uma zona no nosso cérebro chamada “giro fusiforme”, que tem a capacidade de reconhecer rostos. Essa capacidade é, nada mais nada menos do que conseguir reconhecer a chamada “proporção divina”[3]. A “proporção divina” ou “número de ouro” é utilizada desde há séculos e está presente por todo o lado. Temos, no caso da pintura, a obra de Leonardo Da Vinci La Gioconda (1503-1506).

La Gioconda, Leonardo Da Vinci (1503-1506)

Agora que compreendemos o significado de belo, podemos retomar à teoria da arte como forma. Esta foi proposta em 1914 pelo filósofo inglês Clive Bell[4] (1881-1964), sendo uma reação às alterações radicais que ocorreram na arte europeia. Os artistas, principalmente pintores, passaram a interessar-se pela exploração de diferentes linhas, formas e cores, conceitos mais abstratos. Deixou assim de ser necessário representar ou exprimir algo numa obra para que esta seja reconhecida como arte. Como referido anteriormente, a teoria formalista diz-nos que uma obra só pode ser considerada arte se for um artefacto e se exprimir uma emoção estética. Podemos dizer de forma resumida que:  X é uma obra de arte, se e só se, X for concebido principalmente para possuir e exibir forma significante.

O autor entende por forma significante a organização estruturada de linhas, cores, formas, volumes, entre outros aspetos.

“Que propriedade é partilhada por todos os objetos que nos causam emoções estéticas? (...) só uma resposta parece possível – forma significante. São, em cada um dos casos, as linhas e cores combinadas de um modo particular, certas formas e relações de formas, que suscitam as nossas emoções estéticas. A estas relações e combinações de linhas e cores, a estas formas esteticamente tocantes, chamo Forma Significante «forma significante» ; e a «forma significante» é a tal propriedade comum a todas as obras de arte visual.”[5]

A teoria formalista é assim um confronto direto entre o sujeito e a forma, é necessário que haja alguém para a apreciar.

Esta teoria é facilmente posta em prática. Pensemos nos diferentes tipos de arte:

- Pintura. As combinações das linhas, formas e cores são aquilo que nos fascina;

- Música. A organização sonora que nos permite experienciar diferentes tipos de emoções;

- Literatura. A estrutura narrativa, a combinação de palavras que nos teletransporta para outro mundo que não o nosso;

- Dança. A composição de figuras e movimentos, várias vezes acompanhada de belas sinfonias;

- Escultura e Arquitetura. Os traços e contornos, as simetrias das formas.

Podemos ainda observar outro exemplo a favor desta teoria. Como referido anteriormente, todos nós temos a capacidade de reconhecer o belo, bem como de formular juízos de valor. Assim sendo, facilmente conseguiríamos reconhecer uma obra projetada com a intenção de exprimir uma emoção estética de uma que não tinha essa intenção. Foi então realizada uma experiência onde várias pessoas foram convidadas a distinguir pinturas abstratas reais de falsas. Algumas eram originais de Mondrian[6] e outras de Pollock[7], que foram pintadas com base em padrões e regras rígidas, ao contrário das imitações. A maioria escolheu as originais de ambos os pintores, ainda que os seus estilos sejam muito diferentes. Esta experiência reforça a ideia de que existe algo em nós que consegue sentir emoções estéticas e a identificar o belo, mesmo que de forma inconsciente.

                                                               Convergence, Pollock (1952)


                                         Composition with Red Blue and Yellow, Mondrian (1930)            

        Esta teoria permite-nos também distinguir as obras de arte dos objetos naturais. Se há algo que tanto a arte quanto a natureza têm em comum é a simetria e a verdade é que o mundo natural pode sim transmitir-nos uma emoção estética. No entanto, esses elementos não foram criados nem pelo ser humano nem com a intenção de exibir uma forma significante.

CRÍTICAS À TEORIA FORMALISTA E RESPOSTA ÀS OBJEÇÕES

Embora a teoria formalista seja aquela que, a meu ver, melhor caracteriza o conceito de arte, existem algumas objeções.

Em primeiro lugar, os críticos afirmam que “A teoria formalista não define de modo satisfatório forma significante”. A argumentação dos formalistas é feita em círculo, dizendo que a forma significante é aquilo que desperta as nossas emoções estéticas e que estas apenas são sentidas na presença da forma. Acrescentam ainda que o significado de “forma significante” não é explícito nem objetivo.

Outra das críticas apresentadas é: “O conteúdo e os contextos das obras são relevantes para a apreciação da arte”. Analisar se algo é uma obra de arte passa apenas por apreciar a sua forma, sendo o conteúdo da mesma irrelevante.

Todavia, estas objeções não são bem-sucedidas. Observemos a primeira crítica: “A teoria formalista não define de modo satisfatório forma significante”. Como foi possível compreender ao longo do ensaio, existe algo a priori em nós que nos leva a saber se tal obra é bela ou não. Podemos ter uma maior ou menos sensibilidade no que toca à emoção estética, mas a verdade é que conseguimos reconhecer se algo é ou não belo. Além disso, o conceito de arte não deve ser objetivo, pelo que não é necessário definir rigorosamente “forma significante”. Se o fizéssemos, estaríamos a cortar as asas da liberdade de expressão do artista.

Já a segunda crítica é, das duas, a mais plausível. No entanto, também pode ser respondida. É verdade que o conteúdo é importante, mas este é um complemento da sensação estética que sentimos. Vejamos um exemplo: se eu escutar uma música com uma melodia lindíssima cantada numa língua estrangeira que eu não domino, a minha primeira impressão será ao escutar a sinfonia. É a maneira como os sons estão organizados que me traz uma nova sensação, um novo sentimento, não a letra. O exemplo aplica-se também para o oposto: se eu escutar uma cacofonia que tenha uma letra muito bonita, a minha primeira impressão será, como esperado, a desorganização sonora. É neste sentido que a teoria da forma responde, por muito que o conteúdo seja bom, é necessário que a forma significante nos transmita a emoção estética que tanto falámos ao longo do ensaio.

CONCLUSÃO

Se por um lado é importante encontrar uma definição de arte para nos ajudar a nível político e organizacional, por outro, devemos continuar nesta busca pelos limites artísticos. A verdade é que há milhares de anos que se fazem obras de arte e, até hoje, não há um consenso naquilo que define uma obra de arte de um mero objeto. Nós, seres humanos, tivemos a capacidade de ir à lua, mas não conseguimos encontrar limites para algo tão próximo de nós? Talvez a resposta a esta pergunta seja simples: é possível que existam sim critérios transversais às obras de arte - como vimos neste ensaio, o caso da simetria, mas a verdade é que não podemos limitar a arte numa caixa. Se o fizéssemos, estaríamos a cortar as asas da liberdade de expressão do Ser Humano, passaríamos a viver num mundo com poucos detalhes e novidades.

Por isso, retomando o exemplo exposto na introdução: A exposição que foi limpa por uma funcionária, por esta achar que se tratava de lixo, pode ser realmente considerada arte? Talvez pela teoria formalista, a resposta seria não. A exposição não nos transmite, de facto, uma emoção estética, mas sim o caos após uma festa de ano novo. No entanto, é de facto mais interessante pensar que, por não existir uma definição concreta, este incidente deu aso a diversas conversas e discussões. E são essas trocas de ideias que nos fazem crescer enquanto indivíduos, que nos fazem refletir e ir mais longe. Perguntas que nos levam a outras perguntas e que nos obrigam a ver o mundo de diferentes perspetivas. Como disse Nelson Goodman, a pergunta “o que é arte?” deveria ser substituída pela pergunta mais adequada “quando há arte?”. E essa discussão está apenas no princípio.

 

FIM

 

BIBLIOGRAFIA

A ÉTICA E O BELO SEGUNDO KANT: PELA FACULDADE DO JULGAR. Consultado a 17 de maio de 2023. Disponível em: https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/10236/1/8..pdf

A teoria da forma significante de Clive Bell. Consultado a 7 de maio de 2023. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PEINWNLibfw

Beleza e saúde mental: como o cérebro enxerga o belo. Consultado a 15 de abril de 2023. Disponível em: https://www.telavita.com.br/blog/beleza-e-saude-mental/

Clive Bell. Consultado a 24 de março de 2023. Disponível em: Clive Bell - Brasil | Crítico britânico | Britannica

Composition with Red Blue and Yellow. Consultado a 17 de maio de 2023, Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Composition_with_Red_Blue_and_Yellow

Empregada de limpeza confunde arte com lixo. Consultado a 24 de março de 2023. Disponível em: Empregada de limpeza confunde arte com lixo (jn.pt)

Estética (Conceito, Definição, Significado, O que é). Consultado a 21 de março de 2023. Disponível em: https://knoow.net/ciencsociaishuman/filosofia/estetica/

Experimentando com Mondrian: comparando o método de produção com o método de escolha. Consultado a 15 de abril de 2023. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/273574222_Experimenting_with_Mondrian_Comparing_the_method_of_production_with_the_method_of_choice

Filosofia da arte. Consultado a 1 de maio de 2023. Disponível em: https://aia.madeira.gov.pt/images/files/telensino/FILOS_11_Aulas1_2_20e23abril.pdf

Filosofia 11º ano - A Filosofia e a Arte. Consultado a 21 de março de 2023. Disponível em: Filosofia 11º ano - A Filosofia e a Arte 💭🎨 - YouTube

Introdução à Estética. Consultado a 24 de março de 2023. Disponível em: George Dickie - Bertrand Livreiros - livraria Online

Investigações Estéticas -Ensaios de filosofia da arte. Consultado a 26 de março de 2023. Disponível em: Investigações Estéticas de Jerrold Levinson - Livro - WOOK

Jackson Pollock. Consultado a 17 de maio de 2023, Disponível em: https://www.jackson-pollock.org/convergence.jsp

Kurzgesagt – In a Nutshell. Consultado a 15 de abril de 2023. Disponível em: https://sites.google.com/view/kgssourcesbeauty/startseite

Mona Lisa. Consultado a 5 de maio de 2023. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Mona_Lisa

O juízo de gosto segundo Kant. Consultado a 17 de maio de 2023, Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/10/13/o-juizo-de-gosto-segundo-kant

O que é arte? Consultado a 26 de março de 2023. Disponível em: O que é arte? - YouTube

O Que é Proporção Áurea? Entenda Como Ela Mudou a História da Arquitetura. Consultado a 15 de abril de 2023. Disponível em: https://www.vivadecora.com.br/pro/proporcao-aurea/

O que nos torna atraentes para os outros. Consultado a 15 de abril de 2023. Disponível em: https://observador.pt/2015/04/10/nos-torna-atraentes-os-outros/

Os limites da arte. Consultado a 26 de março de 2023. Disponível em: Os limites da Arte - Opinião Sem Medo! (uai.com.br)

Piet Mondrian: obras e biografia. Consultado a 17 de maio de 2023, Disponível em: https://www.todamateria.com.br/piet-mondrian-obras-biografia/

Porque coisas bonitas nos fazem felizes - A beleza explicada. Consultado a 15 de abril de 2023. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-O5kNPlUV7w

Teorias essencialistas da arte. Consultado a 26 de março de 2023. Disponível em: https://criticanarede.com/aalmeidateoriasessencialistasdaarte.html

Teoria formalista. Consultado a 29 de março de 2023. Disponível em: https://jornaldefilosofia-diriodeaula.blogspot.com/p/verificando-que-diversidade-de-obras-de.html


[2]Kant foi um filósofo alemão  e um dos principais pensadores do Iluminismo. Os seus abrangentes e sistemáticos trabalhos na epistemologia, metafísica, ética e estética fizeram dele uma das figuras mais influentes da filosofia ocidental moderna.” Kant. Consultado a 16 de maio de 2023. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Immanuel_Kant

[3]“Proporção áurea é uma constante real algébrica irracional utilizada na arquitetura, nas artes e no design gráfico. Ela é representada pela divisão de uma reta em dois segmentos (a e b), sendo que quando a soma desses segmentos é dividida pela parte mais longa, o resultado obtido é de aproximadamente 1,61803398875. Este valor é chamado de “número de Ouro”.”  Proporção áurea. Consultado a 7 de maio de 2023. Disponível em: https://www.vivadecora.com.br/pro/proporcao-aurea/

[4] : Bell (1881-1964) foi um filósofo e crítico de arte inglês. Foi um dos primeiros membros do Grupo de Bloomsbury, composto por artistas e intelectuais britânicos. Estudou em Paris, local onde despertou o seu interesse pela arte. Foi um dos principais teóricos do movimento estético conhecido como "Formalismo". Para Bell, todas as obras que consideramos como arte são artefactos que despertam em nós, público, uma emoção estética. Esta seria uma resposta emocional que é desencadeada pela contemplação de formas e cores harmoniosas.

[5] Clive Bell, Arte, Trad. Rita C. Mendes, Texto & Grafia, 2009

[6] “Pieter Cornelis Mondrian (1872-1944) foi um pintor neerlandês modernista que criou o movimento artístico neoplasticism”. Piet Mondrian. Consultado a 17 de maio de 2023. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Piet_Mondrian

[7] Paul Jackson Pollock (1912-1956), conhecido profissionalmente como Jackson Pollock, foi um pintor norte-americano e referência no movimento do expressionismo abstrato. Jackson Pollock. Consultado a 17 de maio de 2023. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jackson_Pollock

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

31 de outubro e o Génio Maligno do 11º A

Hoje fizemos um concurso de frases sobre a terrível ficção de Descartes, o Génio Maligno.



1º Prémio

Estamos todos a ver televisão, mas o Génio Maligno é que tem o comando !!

Menção Honrosa 

A hipótese do Génio Maligno diz-nos que o Homem raciocina, pensa, julga, porém o raciocínio é passível de erro e é incerto, logo, não garante que o Homem seja capaz de distinguir o verdadeiro do falso.


E, por fim, os 'geniozinhos' benignos do 11ºA.




domingo, 2 de outubro de 2022

ASPETOS DO CONTEXTO DO PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DESCARTES

  « Esse mal do seu tempo (…) podemos exprimi-lo em duas palavras: incerteza e confusão.»  Koyré, Alexandre (1980). Considerações sobre Descartes. Ed. Presença, pág. 24 


«O século XVI foi uma época de importância capital na história da humanidade, uma época de enriquecimento prodigioso do pensamento e de transformação profunda da atitude espiritual do homem; uma época possuída por uma verdadeira paixão da descoberta: descoberta no espaço e descoberta no tempo; paixão pelo novo e paixão pelo antigo. (…) Alargamento sem igual da imagem geográfica, científica do homem e do mundo. Fervilhamento confuso e fecundo de ideias novas e de ideias renovadas. Renascimento de um mundo esquecido e nascimento de um mundo novo. Mas também: crítica, abalo, e enfim, dissolução e mesmo destruição e morte progressiva das antigas crenças, das antigas conceções, das antigas verdades tradicionais que davam ao homem a certeza do saber e a segurança da ação.»  Koyré, Alexandre (1980). Considerações sobre Descartes. Ed. Presença, pág. 24-24 

A crise da ‘Universidade’ (escolástica aristotélica) 

O termo «Escolástica» designa uma corrente filosófica medieval, dominante, sobretudo nos séculos XIII, XIV e XV, marcada pela conjugação entre razão e fé (cristã); a razão e o saber correspondiam, na interpretação escolástica, à obra filosófica e científica de Aristóteles, a fé exprimia-se exclusivamente na palavra e interpretação da BÍblia Sagrada. 
A especulação escolástica difundiu-se a partir das escolas catedralísticas e monásticas e, depois, das universidades. A Escolástica assumia um método de aprofundamento dos temas filosófico-teológicos a partir de quaestio (questões) e da sua discussão (disputatio). As disputatio tornaram-se o método do ensino universitário e o paradigma do conhecimento. As ordens religiosas dos Dominicanos e Jesuítas, dominaram a chamada «segunda Escolástica», correspondente à fase mais tardia. Descartes fará parte dos que rejeitam o domínio da Escolástica nas universidades e escolas, considerando que se ocupam de inúteis discussões que nada têm a ver com o rigor e o questionamento científico. No seu Discurso do Método e em várias outras obras, o filósofo associa o ensino escolástico à confusão e incerteza do conhecimento e advoga a necessidade de uma reforma geral do Saber (ciência). Descartes conta-nos que frequentou a escola Jesuíta (o Colégio La Fleche) e transmite-nos quão má considerou esta experiência: 
«Desde a infância fui alimentado nas letras e tinha um extremo desejo de as aprender, porque me persuadiram de, por meio delas, poder adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo o que é útil à vida. Mal terminei porém, os estudos pelos quais se costuma ser acolhido na classe dos doutos, mudei inteiramente de opinião. De tantas dúvidas e erros me via embaraçado que me parecia não haver tirado outro proveito do procurar instruir-me senão o de ter descoberto mais e mais a minha ignorância. E, todavia, frequentara uma das mais célebres escolas da Europa, onde cuidava existir homens sapientes, se é que existem em algum canto da Terra.»                                          DESCARTES, Discurso do Método                  
« Comprazia-me, sobretudo, com as matemáticas, pela certeza e evidência das suas razões (…). Sobre a filosofia direi que, vendo-a cultivada pelos mais excelentes espíritos que desde há vários séculos viveram e, todavia, nenhuma coisa nela haver sobre a qual não se discuta – por conseguinte, que não seja duvidosa - , não me chegava a presunção de esperar ter nela melhor êxito do que os outros. E considerando como, a propósito de uma mesma matéria, podem  existir várias opiniões defendidas por doutas pessoas sem que nunca possa haver mais do que uma verdade, direi que tomava quase como falso o que apenas era verosímil.»                                                          DESCARTES, Discurso do Método 

O ‘novo’ mundo 




 Sobretudo, nos séculos XV e XVI, quando emergiu na Europa o Renascimento Cultural, uma nova conceção de mundo ou de “cosmos” passou a surgir, associada a vários aspetos
 - uma nova conceção do nosso mundo, a partir dos Descobrimentos marítimos: novos continentes, povos e costumes; 
- uma nova conceção do cosmos (universo), com a decadência da ciência ptolomaica1 (geocentrismo) e a afirmação do heliocentrismo, a partir de Nicolau Copérnico2 .
O universo passa a ser encarado como algo que pode ser compreendido matematicamente e explicado. O papel de Galileu 3 na sistematização dessa conceção revolucionária foi decisivo, já que ele foi um dos primeiros a aperfeiçoar instrumentos técnicos, como o telescópio, para melhor observação dos fenómenos. Foi Galileu também que deu um novo rumo às pesquisas sobre o movimento, com a elaboração da lei da inércia, e recuperou as teses de Copérnico sobre a translação terrestre. A junção entre observação, experimentação e formulação de uma explicação teórica e matemática, constitui o alicerce da ciência moderna, que se forjou sob o signo da Revolução Científica do século XVII.



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1- Cláudio Ptolomeu de Alexandria (90 – 168) que desenvolve a imagem geocêntrica do mundo, já defendida por Aristóteles. 

2- Nicolau Copérnico, astrónomo e matemático polaco (1473-1543) desenvolveu a teoria heliocêntrica que colocou o Sol como o centro do Sistema Solar, contrariando a então vigente Teoria Geocêntrica (que considerava a Terra como o centro). É considerada como uma das mais importantes hipóteses científicas de todos os tempos, tendo constituído o ponto de partida da astronomia. A partir de Copérnico, a hipótese heliocêntrica foi defendida e desenvolvida por Galileu, Kepler, Descartes e Newton, dando origem à Física moderna. 

 3- Galileu Galilei, físico, matemático e filósofo florentino (Florença, Itália) (1564-1642)


quinta-feira, 15 de setembro de 2022

A Definição : condições necessárias e condições suficientes

 


Uma condição necessária é apenas a condição introduzida pela consequente de uma proposição condicional; e uma condição suficiente é apenas a condição introduzida pela antecedente de uma proposição condicional.

Branquinho, J. & Murcho, D. org. (2001). Enciclopédia dos Termos Lógico-Filosóficos. Gradiva. Lisboa. P.151

 

Frequentemente fazemos a pergunta: O que é X? Como em : O que é um mamífero? Ou O que é um triângulo?

Quando fazemos estas perguntas estamos a pedir uma definição. A definição de mamífero ou a definição de triângulo, seguindo os nossos exemplos.

 

Uma resposta possível para «o que é um mamífero?», ou seja, uma definição de mamífero, poderia ser: Um mamífero é um animal vertebrado, de sangue quente, cujas crias se alimentam do leite materno.

Não nos preocupa, agora, verificar se esta é uma definição adequada ou não, pois queremos analisá-la, apenas, do ponto de vista lógico.

Na realidade esta definição está a mostrar-nos quais são as condições para que algo, possa ser mamífero. Vejamos:

·       Se é mamífero, então (tem de ser) ANIMAL (1ª condição necessária)

·       Se é mamífero, então (tem de ser) VERTEBRADO (2ª condição necessária)

·       Se é mamífero, então (tem de ser) de SANGUE QUENTE (3ª condição necessária)

·       Se é mamífero, então (tem de ser), enquanto cria, ALIMENTADO DE LEITE MATERNO (4ª condição necessária).

Todas estas condições são necessárias, pois têm de estar presentes no ‘mamífero’; sob o ponto de vista lógico, elas constituem o consequente de uma proposição condicional cujo antecedente é ‘mamífero´ (o definido).

Queremos dizer, então, que estas condições não podem estar ausentes: elas são necessárias. Mas elas não são suficientes pois que nenhuma, só por si, chega para definir um ‘mamífero’.

Uma definição deve indicar-nos quais são as condições necessárias e suficientes para que uma ‘coisa’ seja o que é: explicar-nos, portanto, a essência da ‘coisa’.

Porém, o que distingue condições necessárias de condições suficientes?

A condição suficiente é aquela que a ‘coisa’ não partilha com outra classe de seres, portanto que, sendo necessária (pois não pode estar ausente), a sua presença, só por si, define a ‘coisa’ – é própria dela e de mais nenhuma outra.

 

Vejamos o modo como Aristóteles definiu o Homem:

O Homem é um animal racional.

 

Se usarmos proposições condicionais, teremos:

·       Se é Homem, então (tem de ser) ANIMAL (1ª condição necessária)

·       Se é Homem, então (tem de ser) RACIONAL (2ª condição necessária)

Aristóteles mostra-nos que, para definirmos Homem, é suficiente conjugarmos estas duas condições necessárias.

Caso aceitemos que a racionalidade é uma qualidade exclusiva dos seres humanos (o que pode ser discutível) e não acreditemos, por exemplo, em seres angélicos ou extraterrestres inteligentes, então ser RACIONAL é condição suficiente para ser Homem, pois que a racionalidade não se aplica a mais nenhuma classe de seres.

Neste caso, e somente neste caso, podemos definir o Homem como ser racional, mas também inverter o consequente e o antecedente e afirmarmos:

·       Se Racional, então (tem de ser) HOMEM.

Esta seria, portanto, uma propriedade lógica exclusiva das condições suficientes.